segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Crítica: Philomena


Quando escrevi sobre o filme Bezerra de Menezes – O Diário de Um Espírito (2010), em um dos parágrafos citei a estrofe de um poema do escritor inglês William Wordsworth (1770 - 1850), sobre a morte do Deus Pã: “Oxalá um pagão ainda eu fosse/ Por velhas ilusões acalentado/ A paisagem seria bem mais doce/ E o mundo muito menos desolado.” (p.185 d’O Livro de Ouro da Mitologia - Thomas Bulfinch, tradução de David Jardim Júnior - Edições de Ouro - 1967). Diz uma lenda que quando Cristo nasceu, um grito de dor ecoou por toda a Grécia: - Deus Pã está morto! Pã era o Deus da Natureza, amante da música e inventor da sírinx. Com Pã morreu a inocência e com o cristianismo nasceu a “abnegação” ampla, geral e irrestrita, ao custo (ainda) de muitas vidas. Com o cristianismo acabou a alegria de viver e começou o martírio e a culpa sem fim. O cristão paga tanto pecado (desde antes de nascer) que nem sabe mais pelo que está pagando..., até parece a carga tributária brasileira. E ai de quem reclamar!”


Sempre que me chega alguma obra desvelando as abomináveis caixas pretas do catolicinismo, digo, catolicismo, me lembro desse poema, que conheci ainda na adolescência e, ai, ai, ai, o mundo católico, sob o jugo do seu Deus Cruel, me parece ainda mais anticristão, mais desnaturado. Philomena (Philomena, UK, 2013), dirigido pelo britânico Stephen Frears, trata de fatos relacionados à vida da irlandesa Philomena Lee (Sophie Kennedy Clark) que, em 1952, grávida e solteira aos 18 anos, foi “internada” no Abbey Ross Sean, Convento dirigido pelas Irmãs dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, no Condado de Tipperary, na Irlanda, onde nasceu o seu filho Anthony, que lhe foi tirado (para adoção) três anos depois. Sob a tutela das malevolentes irmãs que, por certo, desconheciam a passagem da mitologia judaico-cristã que reza que Jesus era filho de mãe solteira, ela (que sabia nada sobre sexo) desceu ao Inferno Católico Apostólico Romano (e Irlandês) para expiar o seu pecado da gravidez prematura. Alguns anos após “deixou” o Convento, se casou e, em segredo, buscou pelo filho. Quando este fez 50 anos, Philomena (Judi Dench) decidiu revelar o seu “pecaminoso” passado à filha e, com a ajuda do jornalista Martin Sixmith (Steve Coogan), foi aos EUA em busca de respostas, mas era na Irlanda que estava o sórdido desfecho de seu drama.

A partir do ponto de vista do jornalista Sixmith, com seu pavio curto e humor ácido, Frears desenha um impressionante painel do poder do catolicismo na Irlanda dos anos 1950 (pecado: nascimento de Antony) aos 2000 (perdão: busca por Antony) e o papel vergonhoso dos conventos-maternidade. Não creio que tais práticas desumanas (como as que se vê na tela) se dessem só ali, já que em todos os lugares do mundo onde a igreja católica estendeu seus tentáculos a sexualidade ainda é tabu e mulheres e meninas, vítimas de estupro, continuam martirizadas. Na verdade as mulheres são martirizadas não apenas pela igreja, basta ver o papel que lhes cabe na publicidade. Para alguns segmentos da sociedade elas continuam sendo nada, ou mero bibelô remendado. Tomara que um dia, cientes, elas deixem de acatar tamanha desordem.


O drama de Philomena, cujo capítulo da natividade é digno de um conto de Charles Dickens (1812-1870), é daqueles de “cortar o coração”. Porém a narrativa dribla a pieguice e trata o assunto com seriedade e indignação que a trama pede e não como dramalhão novelesco com clichês de ocasião para versões tipo “baseado em história real”. A tensão é aliviada nos diálogos, mais precisamente nas reflexivas conversas ou embates sobre religião, sexualidade, ética, compaixão, entre a cristã Philomena e o ateu Sixmith. O texto, evidentemente, não é hilário, mas provoca riso, pela inesperada franqueza da condescendente mãe e do jornalista cético, ao se sentirem mais familiarizados também com o caso.

Se é nos pequenos frascos que se encontram os melhores perfumes, é na sutileza do enredo, ali nas entrelinhas do subtexto (?), que se encontra o grande mote de Philomena: tolerância. O tema em pauta (natividade/família/religião/patrimônio) está no átrio, com perturbadores retratos côncavos e convexos das “filhas de Maria”, todavia, é na lavanderia que se desenrola a discussão (subjetiva?) mais significativa: os limites da tolerância (na religião e na mídia). O que significa o (gesto de) perdão para quem perdoa e ou é perdoado? Magnanimidade ou humilhação? Até onde a mídia pode ir, sem ser intrusiva, em sua oportuna exploração de “matéria de interesse” público? Até acabar o financiamento ou até o próximo escândalo? O sim e ou o não é muito relativo, quando não se é sujeito da questão.


O comovente Philomena, com bom transito pelo mistério, road movie, denúncia social, vai além do mero interesse humano em tragédias alheias. Ele chega aos espectadores no mesmo cálice (ou: cale-se!) de hóstias. A absorção e ou o engasgo vai depender do nível de fé e senso de justiça de cada um. Em meio a tantos outros escândalos, aos séculos de mazelas (!) em nome do Todo Poderoso, talvez não provoque a mínima marola nos sacramentos católicos, mas pode desvendar o fiéis mais carolas. Ao menos dentro da sala de cinema!

Inspirado no livro The Lost Child of Philomena Lee (2009), de Martin Sixmith, o roteiro de Steve Coogan e Jeff Pope, ainda que com algumas liberdades dramáticas (sem desvirtuar a essência do acontecido) é coeso. Vale lembrar que a obra de Sixmith (anteriormente pensada para veiculação em um tabloide), além de desvelar o repugnante esquema de adoção praticado pela igreja católica (sob a proteção do arcebispo John Charles McQuaid e do governo irlandês, nos anos 1950/60), abriu caminho para que, na Irlanda, milhares de mães e filhos, separados nesse período, possam um dia se reencontrar. Judi Dench e Steve Coogan, em desempenhos notáveis, dão veracidade e humanidade aos seus personagens em busca de paz interior e ou reordenação profissional.

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