quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Crítica: O Filho de Saul


Já foram feitos dezenas de filmes sobre o Holocausto..., e com certeza outras dezenas virão. Geralmente é uma variação mais ou menos traumática e ou pungente do tema Segunda Guerra/Nazismo x Judeu/ Campo de Concentração/ Liberdade..., que muito espectador curioso ao tema já assiste meio que anestesiado, comendo pipoca e tomando refrigerante..., enquanto a barbárie rola na tela.

O Filho de Saul (Saul fia, 2015), filme húngaro dirigido por Lazló Nemes..., retorna ao inferno de Auschwitz-Birkenau, em outubro de 1944, para mostrar o destino das pessoas recolhidas ao campo de concentração e extermínio pelo viés dos Sonderkommandos..., prisioneiros que tinham alguma sobrevida de semanas ou meses, enquanto “serviam” aos alemães nazistas, alimentando de judeus as câmaras de gás e os fornos incineradores e também de cinzas os rios e de corpos excedentes as valas. Ainda que vivessem na iminência da própria morte, os resistentes Sonderkommandos acreditavam no fim da guerra ou num levante que facilitasse a fuga.


O Filho de Saul, co-roteirizado por Nemes e Clara Royer, num registro fotográfico meticuloso e claustrofóbico de Mátyás Erdély, acompanha a angustiante mudança de rotina e de caráter do judeu húngaro Saul Ausländer (Géza Röhrig), integrante do Sonderkommando, que (em vez de incinerar) decide enterrar o corpo de um garoto “morto” na câmara de gás. Para tanto, precisa encontrar, entre os prisioneiros, um rabino que faça as orações fúnebres àquele menino desconhecido que tomou como seu filho. Uma tarefa muito mais difícil do que a de conduzir o próprio povo para a câmara de gás..., já que tem que driblar a segurança nazista e a contrariedade dos outros membros do grupo, que contam com ele para levar a cabo o plano da revolta no campo de extermínio.

Excetuando a história do menino morto, o enredo é inspirado em fatos macabros narrados em Os Manuscritos de Auschwitz, que fala do trabalho nada nobre dos Sonderkommandos e a rebelião no dia 7 de outubro de 1944. Longe da pieguice melodramática da bíblia de entretenimento hollywoodiana..., Lazló Nemes não está preocupado em fazer um filme bonito, mas em mostrar os horrores da guerra e a ilimitada insanidade humana. Câmera na mão, planos-sequência, enquadramento, closes, ausência de trilha (!!!), gritos, diálogos mínimos (em húngaro, alemão, iídiche e polonês) e facetados contribuem para uma das mais incômodas experiências cinematográficas do ano e ou já vista em filmes sobre o Holocausto.


Nemes não julga os atos dos Sonderkommandos e tampouco explica a obstinação de Saul em querer enterrar o corpo de um desconhecido. Se é a expiação pelo trabalho ingrato em Auschwitz-Birkenau, a recordação de algum filho morto e ou a percepção da infância perdida, caberá ao espectador realizar tal leitura. Há um grande leque de possibilidades, que dependerá muito da intensidade de imersão na trama. A mim, o gesto de solidariedade e fé, de Saul, lembrou a ação do personagem judeu Guido Orefice (Benigni), que faz o seu filho Giosuè (Giorgio Cantarini) acreditar que estão participando de um jogo e não num campo de extermínio, durante a 2ª Guerra, no belíssimo A vida é Bela (La vita è bela, 1997), de Roberto Benigni. Em O Filho de Saul, o também determinado protagonista age (contrariando as regras) sem se preocupar com a perda de “privilégios” e ou com um dia a mais e ou a menos de vida (“estamos todos mortos!”) ao trocar o rito a uma criança morta pela fuga dos adultos vivos. Até mesmo no final, um e outro se complementam no itinerário da liberdade. Sombra e luz insólitas num palco de atrocidades que (sete décadas depois) ainda teima em fazer eco em outros territórios..., com ou sem alcance midiático.

O Filho de Saul é um drama tenso, à beira de um thriller de guerra, muito bem conduzido pelo estreante Lazló, que acerta tanto no elenco quanto na narrativa sóbria. Não há exibicionismo e sequer trilha sonora (!!!) para desviar a atenção. O terror provocado está mais na sugestão, que é sempre mais forte e incômoda que qualquer cena explícita. Um filme para se ver e refletir uma pouco mais sobre a senda evolutiva do homem social e religioso.

Ah, não será novidade se, em breve, os norte-americanos decidirem refilmá-lo, enchendo de clichê, trilha chorosa, sensacionalismo etc.

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