sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Crítica: Os Abraços Partidos




Acertando ou errando (?) Pedro Almodóvar continua sendo unanimidade. Seu mais recente trabalho, Os Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, Espanha, 2009), tem dividido inflamadas opiniões. Encontra-se todo tipo de comentário. Uns críticos dissecam a vida do diretor espanhol, outros dissecam a obra e ainda há os que se debruçam apenas sobre o filme. Não tem meio termo, o filme é amado ou achincalhado.

Com um título plural ao do singular e ótimo filme argentino, O Abraço Partido (El Abrazo Partido, Argentina, 2004), do diretor Daniel Burman, que também fala de desejo, rejeição, amores, traição, segredos, reparação, com uma outra latinidade (é claro), Os Abraços Partidos, de Almodóvar, é igual na exposição, mas diferente no acento dramático de seus filmes anteriores. O diretor continua tratando de assuntos pertinentes ao seu universo como: cinema, desejo, sexo, vingança, segredos, ciúme..., mas com alguma variação de gênero. Desta vez o spot não está exatamente sobre as mulheres (Lena e Judit), mas sobre os homens (Mateo/Harry, Enrique, Diego, Raio X). É a partir do mundo deles que descobrimos os segredos que os envolvem e também os escondidos pelas mulheres. São eles os responsáveis pelo silêncio trágico e redenção delas, através de imagens perdidas ou restauradas.

Em entrevistas recentes, Almodóvar disse ter deixado as drogas por amor à vida. No filme, quem deve seguir o conselho é Diego (Tamar Novas), um DJ que, acidentalmente toma uma overdose e vai parar num pronto socorro. Ali, numa conversa “informal” com um roteirista cego, Harry Caine (Lluiz Homar), de quem é secretário, alguns segredos começam a ser desvelados. Diego vai entender o porquê da aversão da mãe Judit (Blanca Portillo), produtora de cinema, e de Caine, por Raio X (Rubén Ochandiano), um jovem cineasta, e seu pai, o magnata Ernesto Matel (José Luiz Gómez). Vai saber quem é a bela Magdalena Rivas (Penélope Cruz), mulher de Ernesto e atriz do filme Chicas e Maletas (Meninas e Malas), de Mateo Blanco, que despertou a paixão desenfreada nos dois homens.

Em Os Abraços Partidos, todos têm segredos. Todos têm uma vida dupla: prostituição, drogas, paixões, culpa, homossexualidade, rejeição... Harry Caine, roteirista, é o duplo de Mateo Blanco, cineasta que ficou cego após um trágico acidente, há 14 anos, e mudou de identidade. Amargurado, é ele quem nos conduz pelos intricados caminhos da sua memória, onde alguns fatos do passado se misturam à realização de um filme, com Lena, a sua grande paixão. Saltando de 2008 a 1994, ponto a ponto o seu relato vai enlaçando, uma a uma, as pessoas que o rodeiam. Nesse ir e vir, da sua própria história, o roteirista, mestre em criar tramas e também em filmá-las, falseando o olhar do espectador, verá que foi vítima do seu próprio ofício. O ciúme fez o resto. Nada mais Almodóvar do que acertar as contas com o passado. Seus filmes parecerem estar em constante catarse. Suas histórias são pedaços de vida, quebrados pelo ciúme ou pela vingança, que aos poucos vão sendo costurados com linhas coloridas e doloridas..., mas sempre com algum humor (às vezes negro).

O ciúme desatinado, na leitura de Almodóvar, lembra O Ciúme, na canção de Caetano Veloso: “O ciúme lançou sua flecha preta/ E se viu ferido justo na garganta (...) Mas na voz que canta tudo ainda arde/ Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê (...) Tanta gente canta, tanta gente cala/ Tantas almas esticadas no curtume/ Sobre toda a estrada, sobre toda sala/ Paira, monstruosa sombra do ciúme.” O ciúme, na visão do diretor espanhol, é mais do que uma lágrima sobre um tomate vermelho ou cruzes decorativas que se repetem no apartamento dos amantes. É uma dor que pode ser expiada no reencontro do eu, mesmo que leve 14 anos e que a imagem que se quer abraçar não possa ser retida na memória. Se não se pode mudar o passado, pode-se enterrá-lo definitivamente.

Os Abraços Partidos, na sua pluralidade de sentimentos contraditórios ou não partilhados, é um excelente filme sobre a arte de fazer cinema e de contar histórias. Não é uma aula sobre cinema, é a própria arte em exposição. Pedro Almodóvar é mestre na captação de nuances e na sutileza com que referencia outros mestres da 7ª Arte. O seu cinema é o de amador, daquele que ama o que faz e se repete incansável na busca de um novo olhar. Em uma das mais belas e desconcertantes sequência, ao exorcizar o ciúme (à flor da pele) de seu marido, que assiste a um vídeo gravado pelo filho dele, registrando todos os seus passos e conversas com Mateo, traduzidas por uma leitora de lábios, Magdalena dubla a si mesma numa fala diferente daquela gravada em vídeo. Ao dublar-se ela interpreta e ao interpretar-se transforma o registro do vídeo, criando um subtexto que penetra a imagem na tela e retorna ao espectador do vídeo (Martel) e ao espectador do filme (que vê a ambos) como se real. No tríplice jogo de cena do vídeo e do filme confundem-se a mulher, a atriz e a amante. Num outro momento será Ernesto Martel, corrompido pelo ciúme, quem usará a palavra para ferir a quem ama, através do filme (dentro do filme). É Almodóvar indo ao extremo da metalinguagem e modificando um vídeo dentro filme e um filme dentro do filme, a favor (ou por causa) da palavra. Ou do ciúme!

Os Abraços Partidos é (sim) Pedro Almodóvar do começo ao fim, exposto nas cores do amor, do ciúme, da vingança. No simbolismo no nome e na identidade dos personagens. É a mão e a voz do diretor na plenitude da técnica e do amor ao cinema. É um filme tão igual quanto diferente dos filmes de Almodóvar e, talvez por isso, sujeito ao gosto o ou ao desgosto do espectador.

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