segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Crítica: Amor



Há muitos anos havia uma coleção de figurinhas com textos curtos e estampas coloridas cujo tema era “amor”. Conheci uma garota que colecionava. A frase mais famosa (ainda hoje) era: Amar é jamais ter de pedir perdão.

Quando garoto, além dos livros, eu adorava gibis e minhas irmãs (mais velhas) não abriam mão das fotonovelas. Eu não achava a menor graça em fotonovelas, mas, por conta dos comentários delas, de vez em quando, pegava alguma para ler escondido e matar a curiosidade sobre “certos assuntos proibidos” para a minha idade. Foi assim que, quase adolescente, li uma frase, numa capa dessas revistas, que me chamou a atenção e que me persegue até hoje quando o assunto é “amor”. Era algo tipo: Você seria capaz de fazer o que Manon fez por amor? Não me lembro se a Manon era a Lescaut, de Abade de Prévost. Não importa! O que retive na memória, qual um trauma, é a palavra “sacrifício por amor”, implícito na frase. Era pré-adolescente e quase nada entendia de amor ou se sacrifícios. Adulto, descobri, de maneira desconfortável, o quanto é difícil significar as palavras amor e sacrifício. E o quanto a semântica faz tudo parecer muito maior quando se é sujeito: (a)mor x mor(te).


O filme Amor (Amour, França, Alemanha, Áustria, 2012) de Michael Haneke, é um álbum completo e com figurinhas premiadas sobre a essência de amar e ser amado. É a frase feita tornando-se frase perfeita na reciprocidade do amor e da dor. Haneke não é o primeiro e nem será o último diretor a falar de AVC ou de Alzheimer (Sarah Poley, em Longe Dela, e Richard Eyre, em Iris), mas talvez seja o mais sincero e o mais radical em sua catarse desesperada de atingir o espectador. Não é um eco fácil de se multiplicar, mas é um verbo fácil de se conjugar, porque tem apenas dois tempos: vida (vegetativa) e  morte (digna) no futuro que é o único pretérito de todos nós.

No prólogo de Amor, um prenúncio de morte. No decurso da trama, um drama presente no cotidiano de muitos espectadores. O admirável e culto casal Anne (Emmanuelle Riva) e George (Jean-Louis Trintignant) partilha profissão (pianistas) e gostos culturais refinados (teatro, literatura, música). Após um AVC que deixou o lado direito de Anne paralisado e afetou a sua memória, irá partilhar novos sentimentos. Aos poucos, na drástica mudança de rotina e de humor, ela, o marido, a família, os amigos, a casa..., serão engolidos pelas brumas vespertinas que despertam fantasmas. Porém, antes que a doença se agrave, Anne pede a George que jamais a interne em uma clínica. A única rima possível no hermético verso que sela o destino de ambos, é o corajoso e perturbador ato de amor de George.


Amor fala de algo raro nos dias de hoje: amor verdadeiro comungado numa vida a dois para um sempre que não acaba. Soa piegas porque em tempos de descarte, um amor fugaz não dura o tempo de um resfriado ou de uma gargalhada. Hoje, evita-se comungar até mesmo os prazeres sexuais. O genial Henfil dizia que o problema do mundo era a falta de relamento. As pessoas não se relam mais, abstraem-se até mesmo nos transportes públicos. Talvez porque confundam o relar com o assédio sexual. Georges e Anne não são apenas marido e mulher, cujo amor foi se fortalecendo com o tempo, são companheiros para todas as horas, com as idiossincrasias pertinentes a qualquer casal. São o tipo de gente que apavora os covardes, porque, fora da ordem estabelecida (por quem?), na saúde e na doença, tomam suas vidas nas mãos..., afinal elas lhes pertencem. Ou não?!

Amor é um filme pungente (mas não é cruel!). A sua narrativa, aparentemente fria, tem o peso do tema focado: a fragilidade humana frente aos acidentes de percurso no envelhecimento. O futuro, para qualquer um, é tão imprevisível quanto a pomba que insiste em invadir a casa tomada pela melancolia do casal. Não há música choramingas para embalar e ampliar o sofrimento e a dor, tão tocantes na soberba interpretação de Trintignant e  Riva. Não há concessões à dor alheia, porque não há como mensurar a dor do outro. Assim é a vida, se lhe parece na mesma situação. A impotência de um parente cuidador de alguma vitima de AVC e ou Alzheimer é indescritível..., e constrangedora para o visitante. Pessoa alguma merece tamanho sofrimento.

Há um movimento, ainda incipiente, a favor do indivíduo e contra o estado e a igreja que se acham fiéis depositários da vida humana (enquanto render impostos/dízimos, é claro) até que o cérebro desligue tudo. Vivemos numa sociedade pautada pela mediocridade religiosa, pela hipocrisia religiosa moldada à vontade de um deus-quem-quer, onde um nobre gesto de amor (comungado na alegria e na tristeza), como o de George, pode soar como blasfêmia.

E você, teria coragem de fazer o que George fez por amor?

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