terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Crítica: Cidade Cinza


O que é arte, afinal? Certa vez, visitando uma exposição de arte conceitual, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, achei engraçada a tentativa frustrada de uma monitora em convencer um grupo de crianças a gostar de algumas obras “estranhas”. Ela usou todos os argumentos possíveis sobre a dedicação do autor..., em vão. A subjetividade não convenceu as crianças que preferiram o prazer de outras cores.

A propósito, no capítulo 2: O público não está convidado (e nunca esteve), de seu memorável e divertido A Palavra Pintada (The Painted Word, 1975) - lançado no Brasil pela LPM, em 1987, com tradução de Lia Alverga-Wyler - Tom Wolfe, traçando o curioso percurso da Arte Moderna, sem esquecer os percalços, diz que: “A ideia de que o público aceita ou rejeita qualquer coisa em Arte Moderna, a ideia de que o público escarnece, despreza, não consegue compreender, deixa esmorecer, aniquila, ou comete qualquer outro crime contra a Arte ou artista isoladamente é apenas uma ficção romântica, um sentimento agridoce. O jogo termina e os troféus são distribuídos antes de o público saber o que aconteceu. O público que compra livros em brochura e encadernações aos milhões, o público que compra discos aos bilhões e lota os estádios para assistir a concertos, o público que gasta 100 milhões de dólares em um único filme – esse público influencia o gosto, a teoria e a perspectiva artística na literatura, na música e no teatro, embora haja elites palacianas que se aferram um tanto desesperadamente a cada uma dessas áreas. O mesmo nunca foi verdadeiro com relação à arte. O público cujos números gloriosos são registrados nos relatórios anuais dos museus, todos aqueles estudantes e ônibus de turistas e mamães e papais e intelectuais fortuitos... são apenas turistas, colecionadores de autógrafos, basbaques, espectadores de desfiles, quando se trata do jogo do Sucesso na Arte.” (p. 30/32). Para Wolfe, os colecionadores não compram obras de arte, mas autógrafos (do autor na obra de arte).


Arte! Tanto pode ser tudo quanto pode ser nada! Ou mera questão do ponto (atemporal) em que se avista..., e do grau de alfabetização no assunto. Convivi com artistas de extremos. Alguns com criatividade e técnica apuradíssimas e outros apenas medianos. Certa feita, um renomado artista pintou de branco uma tela, só de brincadeira, para um importante Salão Nacional de Artes Plásticas; outro, ainda desconhecido e um desastre em anatomia artística, inscreveu seu “figurativo” em um Salão Regional de Artes Plásticas. O primeiro, que fez uma gozação, e o segundo, que não sabia pintar, foram premiados pela expressividade (!) de seus trabalhos. Eles entenderam nada. Ri com os dois.

A quem cabe definir o quê é e o quê não é arte? Ao artista? Ao crítico? Ao curador? Ao público espectador? Ao visitante (apressado) que não se detêm por nenhuma obra em uma exposição? Filme de Arte, Teatro Cabeça, Arte Contemporânea..., são linguagens (de expressão) e ou preciosismos (idiossincráticos) de artistas na contramão da cultura dita popular? Definir ou indeferir os signos básicos da cultura (popular ou elitista) e da contracultura, hoje, parece um exercício árduo, já que a leitura e a compreensão da obra lida, pela geração que vem tomando assento na plateia, há algumas décadas, está muito aquém do desejado. Simplificar ou reformular o diálogo só faz deformar o conteúdo. Não é questão de semântica, mas de “- se manda!”.


Cidade Cinza, de Marcelo Mesquita e Guilhermo Valiengo, é um documentário onde a subjetividade se faz presente até no título. O filme trata com pertinência a controversa questão envolvendo grafite (graffiti) e pichação, que se confundem e também se fundem nas paredes, muros, fachadas de edifícios, monumentos, postes e qualquer espaço urbano ao alcance do spray dos grafiteiros e dos pichadores. Para uns, o grafite, com seus coloridos traços, é genuína arte de rua. Para outros, a pichação, com a sua indecifrável escrita, é ato de vandalismo. Liberdade de expressão ou expressão de liberdade? Um confronto cego (ou seria certo?) entre a semântica e a vigilância do “- se manda!”.

Quando criança, no interior de São Paulo, era comum encontrar pelo caminho o nome Casas Pernambucanas, pintado (com cal) em pedras, porteiras, barrancos, troncos de árvores à beira de estradas de terra ou asfaltada. Ficava imaginando como aquele nome aparecia, da noite pro dia, nos lugares mais ermos. Adolescente, morando na capital, lembro da enigmática pintura: Cão Fila k26. Hoje, propagandas de lojas e de políticos (em época da eleição), palavras de ordem contra o (des)governo perderam a sua base para as pichações, grifos que emporcalham patrimônios públicos e os privados, da noite pro dia, marcando território em edificações de qualquer altura.


Cidade Cinza, de Mesquita e Valiengo, que também poderia ser intitulado de A Pintura Apagada, num contraponto interessante à tese de Wolfe, em seu imperdível A Palavra Pintada, tem o seu foco principal na “repintura” de um mural de 700 m², grafitado por artistas paulistas, na Avenida 23 de Maio, em São Paulo, e apagado “por engano”, em entendimento da Lei Cidade Limpa, por funcionários de uma empresa contratada pela Prefeitura de São Paulo, na gestão de Gilberto Kassab, para cobrir com tinta cinza toda e qualquer pichação e ou grafite no centro e arredores da cidade. Ao contrário da Lei Ficha Limpa, pelos políticos, a Lei Cidade Limpa (ainda em vigor) continua sendo levada ao pé da letra, pelos “servidores”.

Enquanto “repintam” o mural, os grafiteiros, hoje internacionalmente conhecidos, como OsGêmeos, Nunca (com impressionante domínio técnico, próximo à gravura) e Nina, falam sobre a obra em questão, movimento hip-hop e de suas trajetórias no “mundano” território da arte de rua e da “migração” para espaços, digamos, mais nobres das galerias em diversas partes do mundo. Além deles, ganham voz e roubam a cena os empregados da empresa contratada pela prefeitura de Sampa, em 2008, para “apagar” os grafites e as pichações. Ingênuos e arrogantes os funcionários analisam, julgam e decidem o que vão cobrir com tinta cinza e o que (raramente) vão deixar mais ou menos “intacto”. Os seus palpites sobre as pinturas, desenhos e pichações que encontram pelo caminho são impagáveis. E o mais irônico é que um deles já foi pichador.


Ao dar voz a artistas, galerista, não-artistas, Cidade Cinza abre relevante discussão (pública) sobre o jato de tinta e o traçado que distinguem o grafite e a pichação, bem como o atributo que faz o primeiro a ser considerado arte, com passe livre para galerias, e a segunda mero ato de vandalismo, condenado ao cinza.  Esse fascinante leque de conceitos, pré-conceitos e preconceitos, expostos de modo tão convincente, faz com que até mesmo o espectador mais radical se dê uma segunda chance de leitura das “intervenções” que encontrará pela rua no seu retorno para casa. Pode não mudar de opinião sobre “a sujeira ao redor”, mas que dará uma nova olhada, isso não há dúvida.

Em Curitiba, recentemente foram grafitadas duas paredes em prédios próximos. Em ambas o “motivo” é internacional (!). A lateral de uma academia de ginástica traz, além de uma “careta”, um texto: “Trabalho sem diversão faz do Jack um bobão”. Ora, por que Jack, e não Zé, Pedro, João? Já a lateral de um banco internacional traz o rosto do músico norte-americano Ray Charles. Será que nossos artistas não são tão (ou mais) relevantes? Poderiam ser grafitados (só para ficar na raça e no ofício): Grande Otelo, Cartola, Machado de Assis... O grafite da academia já foi vandalizado por pichadores.


Cidade Cinza (Brasil, 2013) é um filme independente, realizado ao longo de seis anos. Uma excelente oportunidade para os amantes e curiosos dos velhos e dos novos hábitos da arte conhecerem (?), se deliciarem com as belas obras d’OsGêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo), de Nunca (Francisco Rodrigues) e de Nina (Carina Pandolfo), criadas no Brasil e exterior. E, de quebra, se embasbacar com a lógica dos funcionários que “apagam” os grafites e pichações, e com o discurso das autoridades na “reinauguração” do mural. Vale destacar a ótima música de Criolo, que integra a trilha de Daniel GanjamanO que é arte, ao final?

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