O que é
arte, afinal? Certa vez, visitando uma exposição de arte
conceitual, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, achei engraçada a tentativa
frustrada de uma monitora em convencer um grupo de crianças a gostar de algumas
obras “estranhas”. Ela usou todos os argumentos possíveis sobre a dedicação do
autor..., em vão. A subjetividade não convenceu as crianças que preferiram o
prazer de outras cores.
A propósito, no capítulo 2: O público não
está convidado (e nunca esteve), de seu memorável e divertido A Palavra Pintada (The Painted Word, 1975) - lançado no Brasil pela LPM, em 1987, com
tradução de Lia Alverga-Wyler - Tom
Wolfe, traçando o curioso percurso da Arte Moderna, sem esquecer os
percalços, diz que: “A ideia de que o
público aceita ou rejeita qualquer coisa em Arte Moderna, a ideia de que o
público escarnece, despreza, não consegue compreender, deixa esmorecer,
aniquila, ou comete qualquer outro crime contra a Arte ou artista isoladamente
é apenas uma ficção romântica, um sentimento agridoce. O jogo termina e os
troféus são distribuídos antes de o público saber o que aconteceu. O público
que compra livros em brochura e encadernações aos milhões, o público que compra
discos aos bilhões e lota os estádios para assistir a concertos, o público que
gasta 100 milhões de dólares em um único filme – esse público influencia o
gosto, a teoria e a perspectiva artística na literatura, na música e no teatro,
embora haja elites palacianas que se aferram um tanto desesperadamente a cada
uma dessas áreas. O mesmo nunca foi verdadeiro com relação à arte. O público
cujos números gloriosos são registrados nos relatórios anuais dos museus, todos
aqueles estudantes e ônibus de turistas e mamães e papais e intelectuais fortuitos...
são apenas turistas, colecionadores de autógrafos, basbaques, espectadores de
desfiles, quando se trata do jogo do Sucesso na Arte.” (p. 30/32). Para
Wolfe, os colecionadores não compram obras de arte, mas autógrafos (do autor na
obra de arte).
Arte! Tanto pode ser tudo quanto pode ser nada! Ou
mera questão do ponto (atemporal) em que se avista..., e do grau de
alfabetização no assunto. Convivi com artistas de extremos. Alguns com
criatividade e técnica apuradíssimas e outros apenas medianos. Certa feita, um renomado
artista pintou de branco uma tela, só de brincadeira, para um importante Salão Nacional
de Artes Plásticas; outro, ainda desconhecido e um desastre em anatomia
artística, inscreveu seu “figurativo” em um Salão Regional de Artes Plásticas. O
primeiro, que fez uma gozação, e o segundo, que não sabia pintar, foram
premiados pela expressividade (!) de seus trabalhos. Eles entenderam nada. Ri
com os dois.
A quem cabe definir o quê é e o quê não é arte? Ao
artista? Ao crítico? Ao curador? Ao público espectador? Ao visitante (apressado)
que não se detêm por nenhuma obra em uma exposição? Filme de Arte, Teatro
Cabeça, Arte Contemporânea..., são linguagens (de expressão) e ou preciosismos (idiossincráticos)
de artistas na contramão da cultura dita popular? Definir ou indeferir os
signos básicos da cultura (popular ou elitista) e da contracultura, hoje,
parece um exercício árduo, já que a leitura e a compreensão da obra lida, pela
geração que vem tomando assento na plateia, há algumas décadas, está muito
aquém do desejado. Simplificar ou reformular o diálogo só faz deformar o
conteúdo. Não é questão de semântica, mas de “- se manda!”.
Cidade
Cinza, de Marcelo Mesquita
e Guilhermo Valiengo, é um
documentário onde a subjetividade se faz presente até no título. O filme trata
com pertinência a controversa questão envolvendo grafite (graffiti) e pichação, que se confundem e também se fundem nas
paredes, muros, fachadas de edifícios, monumentos, postes e qualquer espaço urbano
ao alcance do spray dos grafiteiros e dos pichadores. Para uns, o grafite, com
seus coloridos traços, é genuína arte de rua. Para outros, a pichação, com a sua
indecifrável escrita, é ato de vandalismo. Liberdade de expressão ou expressão
de liberdade? Um confronto cego (ou seria certo?) entre a semântica e a
vigilância do “- se manda!”.
Quando criança, no interior de São Paulo, era
comum encontrar pelo caminho o nome Casas
Pernambucanas, pintado (com cal) em pedras, porteiras, barrancos, troncos
de árvores à beira de estradas de terra ou asfaltada. Ficava imaginando como
aquele nome aparecia, da noite pro dia, nos lugares mais ermos. Adolescente, morando
na capital, lembro da enigmática pintura: Cão
Fila k26. Hoje, propagandas de lojas e de políticos (em época da eleição), palavras
de ordem contra o (des)governo perderam a sua base para as pichações, grifos
que emporcalham patrimônios públicos e os privados, da noite pro dia, marcando
território em edificações de qualquer altura.
Cidade
Cinza, de Mesquita e Valiengo, que também poderia ser intitulado
de A Pintura Apagada, num
contraponto interessante à tese de Wolfe, em seu imperdível A Palavra Pintada, tem o seu foco principal
na “repintura” de um mural de 700 m², grafitado por artistas paulistas, na
Avenida 23 de Maio, em São Paulo, e apagado “por engano”, em entendimento da
Lei Cidade Limpa, por funcionários de uma empresa contratada pela Prefeitura de
São Paulo, na gestão de Gilberto Kassab, para cobrir com tinta cinza toda e
qualquer pichação e ou grafite no centro e arredores da cidade. Ao contrário da
Lei Ficha Limpa, pelos políticos, a Lei Cidade Limpa (ainda em vigor) continua
sendo levada ao pé da letra, pelos “servidores”.
Enquanto “repintam” o mural, os grafiteiros,
hoje internacionalmente conhecidos, como OsGêmeos,
Nunca (com impressionante domínio
técnico, próximo à gravura) e Nina,
falam sobre a obra em questão, movimento hip-hop e de suas trajetórias no
“mundano” território da arte de rua e da “migração” para espaços, digamos, mais
nobres das galerias em diversas partes do mundo. Além deles, ganham voz e roubam
a cena os empregados da empresa contratada pela prefeitura de Sampa, em 2008,
para “apagar” os grafites e as pichações. Ingênuos e arrogantes os funcionários
analisam, julgam e decidem o que vão cobrir com tinta cinza e o que (raramente)
vão deixar mais ou menos “intacto”. Os seus palpites sobre as pinturas,
desenhos e pichações que encontram pelo caminho são impagáveis. E o mais
irônico é que um deles já foi pichador.
Ao dar voz a artistas, galerista, não-artistas, Cidade Cinza abre relevante discussão (pública)
sobre o jato de tinta e o traçado que distinguem o grafite e a pichação, bem
como o atributo que faz o primeiro a ser considerado arte, com passe livre para
galerias, e a segunda mero ato de vandalismo, condenado ao cinza. Esse fascinante leque de conceitos,
pré-conceitos e preconceitos, expostos de modo tão convincente, faz com que até
mesmo o espectador mais radical se dê uma segunda chance de leitura das
“intervenções” que encontrará pela rua no seu retorno para casa. Pode não mudar
de opinião sobre “a sujeira ao redor”, mas que dará uma nova olhada, isso não
há dúvida.
Em Curitiba, recentemente foram grafitadas duas
paredes em prédios próximos. Em ambas o “motivo” é internacional (!). A lateral
de uma academia de ginástica traz, além de uma “careta”, um texto: “Trabalho sem diversão faz do Jack um bobão”.
Ora, por que Jack, e não Zé, Pedro,
João? Já a lateral de um banco internacional traz o rosto do músico
norte-americano Ray Charles. Será que
nossos artistas não são tão (ou mais) relevantes? Poderiam ser grafitados (só
para ficar na raça e no ofício): Grande
Otelo, Cartola, Machado de Assis... O grafite da
academia já foi vandalizado por pichadores.
Cidade
Cinza (Brasil, 2013) é um filme independente, realizado ao longo
de seis anos. Uma excelente oportunidade para os amantes e curiosos dos velhos
e dos novos hábitos da arte conhecerem (?), se deliciarem com as belas obras d’OsGêmeos (Otávio e Gustavo Pandolfo), de
Nunca (Francisco Rodrigues) e de Nina (Carina Pandolfo), criadas no
Brasil e exterior. E, de quebra, se embasbacar com a lógica dos funcionários que
“apagam” os grafites e pichações, e com o discurso das autoridades na
“reinauguração” do mural. Vale destacar a ótima música de Criolo, que integra a
trilha de Daniel Ganjaman. O que é arte, ao final?
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