domingo, 10 de agosto de 2014

Crítica: Amantes Eternos


Desde o Nosferatu (1922), de Murnau, muitos vampiros passaram pelas telas de cinema. A variada fauna de vampiros já provocou tanto calafrios quanto risos. Os últimos que nos chegam, com o selo Jim Jarmusch de qualidade, são intelectuais que preferem a tranquilidade do lar sombrio, ao burburinho de uma vida noctívaga. Em vez do risco de uma jugular infectada, a garantia de um puríssimo sangue “O” hospitalar.

Em Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013), Adam (Tom Hiddleston) é um vampiro músico apaixonado por instrumentos de cordas raros e discos de vinil. Vivendo em uma Detroit (EUA) em ruínas, conta com a ajuda do simpático humano Ian (Anton Yelchin) para conseguir suas preciosidades musicais. A sua mulher Eve (Tilda Swinton), dona de invejável biblioteca, mora em Tanger (Marrocos). Ali compartilha sangue e filosofia com o dramaturgo Christopher Marlowe (John Hurt), aquele que alguns acreditam ser o autor dos famosos dramas de Shakespeare. O músico cool e a leitora voraz vivem uma relação mais espiritual que física. No entanto, sonhos preocupantes com Ava (Mia Wasikowska), a irresponsável irmã de Eve, faz com que o erudito casal se reencontre para decifrar suas aflições.


Amantes Eternos surpreende por ser um drama romântico, quase trágico, sobre vampiros. Ele nada tem de terror. O que pode frustrar quem espera ver sangueira jorrando, corpos despedaçados, morcegos ao entardecer etc, recursos cênicos tradicionais em filmes populares do gênero. Felizmente, Jarmusch não é tradicional e muito menos faz o gênero cinema popular que se degusta com combo e smartphone. O seu público é o espectador pensante que espera se deliciar com uma história, ainda que gótica, mais reflexiva. E reflexão, entremeada de nonsense e humor negro (óbvio!), é o que não falta a estes vampiros existencialistas que pelos séculos e séculos acompanharam a evolução e a derrocada social, econômica, cultural, científica dos humanos (ou zumbis, como se referem aos homens). Basta um requintado cálice de sangue entre os dedos para que os dândis soltem a língua (venenosa?) com ironias sobre grandes nomes da literatura, teatro, música... Quando estão enfastiados de revisitar o passado, destilam sobre o presente. E vão (sobre)vivendo em meio ao vintage cult e o descontrole (autoral) tecnológico.


Após a sessão me peguei pensando numa possível sintonia entre Estranhos no Paraíso (1982) e Amantes Eternos (2013), por um pequeno detalhe. Lá atrás, Eva (Eszter Balint) chegava da Hungria, para “agitar” a vida do primo Willie (John Laurie) e seu amigo Eddie (Richard Edson). Agora é Ava (ou seria Lilith?) quem chega de Los Angeles para “agitar” o Paraíso de Adam (Adão) e Eve (Eva) e, por tabela, provocar o “Anjo da Guarda” Ian. Achei curiosa e divertida e essa analogia (e ruptura) sobre o Paraíso (Perdido, de John Milton?), ou o que nos parece ser um Paraíso até que a “tentação” maliciosamente o enreda. O que distingue ou sobrepõe a Eva (de ontem) e a Ava (de hoje) eu sei. Porém, talvez eu esteja viajando num sangue contaminado. Quem quiser tirar a dúvida, veja os dois filmes e conclua por conta própria.

Não creio que haja um diretor de cinema mais underground que Jim Jarmusch. Em uma antiga fan page (abandonada em 2011) é possível encontrar em Minhas Regras de Ouro, e ou atribuídas a ele, um conceito interessante sobre autenticidade e originalidade. À margem de Hollywood, seu território é palco de personagens melancólicos e ou entediados com os rumos do mundo. Não há como ficar indiferente à sua constância ou preferência pelos marginalizados que vivem por teimosia vagando pelo ermo, pelo submundo americano, ou alçando voos baixos por outras paragens igualmente soturnas.


Tratados com apaixonada relevância, seus marginais são sempre convincentes e, por isso, tão arrebatadores quanto a música que veste particularmente cada um. Música que foge do estereótipo “trilha sonora” e envolve até a plateia mais sisuda..., se é que público sisudo se arrisca a ver cinema alternativo.  Jarmusch e música são tão indissociáveis que em Amantes Eternos ele comparece com o seu trio (indie) Sqürl em números e intervenções arrepiantes..., principalmente para quem gosta do bom e velho rock. Com certeza esta é umas das trilhas que estará fácil entre as melhores de 2014.

Enfim, considerando a excelência do elenco; a provocação e inteligência do roteiro que dribla todos os clichês; a trilha irretocável que ilumina e aconchega a sombria história; a notável fotografia de Yorick Le Saux; um Jarmusch ainda surpreendente..., reserve já o seu ingresso.

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