domingo, 12 de outubro de 2014

Crítica: Festa no Céu


Há uma frase que diz: a morte é a única certeza que temos na vida..., já que todos estamos sujeitos a ela. Cada povo tem o seu jeito de celebrá-la ou lamentá-la. Na verdade, diante da morte há mais lamentação do que celebração. A não ser que o Dia dos Mortos se passe no México, com sua rica cultura. É difícil quem não o reconheça nas caveirinhas de açúcar e ou na obra máxima de José Guadalupe Posada (1852-1913), artista plástico e caricaturista político que, através das suas célebres gravuras e desenhos de caveiras, registrava o cotidiano do povo mexicano, que lhe era tão caro, e popularizou a figura de La Catrina.

O Dia dos Mortos, no México, é uma celebração que vem dos primórdios da sua civilização, coisa de 2 a 3 mil anos. Ou seja, muito antes da invasão espanhola. Falo da convidativa comemoração mexicana do Dia dos Mortos apenas para situar a magnífica animação Festa no Céu (The Book of Life, 2014), cuja história se passa em três Reinos: Terra dos Vivos (San Ángel), Terra dos Lembrados e Terra dos Esquecidos. Os dois últimos aparecem no terceiro ato, para arrematar com linha de ouro o epílogo.


Mas, antes de comentar a animação produzida por Guilherme del Toro, com direção de Jorge R. Gutierrez, só para temperar um pouco mais a comida dos vivos aos mortos, com duas ou três pimentas malaguetas..., em 2013 a produtora mexicana Metacube Technology & Entertainment venceu um processo contra a Pixar Animation Studios pelo direito ao título Dia de Muertos, que a empresa da Disney Company pretendia usar em sua produção prevista para 2015. A produtora Metacube, sediada em Guadalajara, já vinha trabalhando há 10 anos no longa-metragem de animação Dia de los Muertos, La Película, que agora, conforme postagem de um cartazete no Facebook, mudou o nome para Dia de Muertos - La Leyenda Original... A sinopse do Dia de Muertos pode ser lida na Revista Digital Clover. E por falar em animação mexicana, veja o excelente curta Hasta Los Huesos, do premiado animador René Castillo (2001), que inspirou Tim Burton em A Noiva Cadáver. Há também outro curta, Dia de los Muertos (2013), que não é mexicano mas é muito bonito. Haja muertos para tanta animación!


Apesar de centrada em San Ángel, no México, Festa no Céu é uma animação norte-americana (sem nenhum demérito!), valendo-se da memória afetiva dos mexicanos Gutierrez e del Toro. A história, um envolvente conto de realismo mágico, fala de amor, a partir do envolvimento de três grandes amigos de infância: Joaquim (que ama) Maria (que ama) Manolo. Fala também de tradição familiar e perseverança: Joaquim, desde menino sonha em ser militar, como o pai; Manolo terá que escolher entre a música (sua grande paixão) e as touradas (herança de família); Maria busca a independência. Enquanto em meio aos gracejos da infância e a autoafirmação na vida adulta os três vivem uma grande aventura na Terra dos Vivos, defendendo a graciosa San Ángel, do vilanesco Chacal e seu bando de malfeitores, duas divindades, La Catrina (La Muerte), feita de açúcar cristal e Xibalba, feito de açafrão, decidem apostar seus Reinos (Terra dos Lembrados e Terra dos Esquecidos) em qual dos jovens conquistará o coração de Maria.


É por conta dessa aposta entremundos que o espectador acompanhará, de queixo caído, a fantástica viagem de Manolo aos mundos inferiores. Na verdade já vai estar de queixo caído desde o princípio da história (dentro da história). Desculpe a redundância, mas, qualquer adjetivo que se use para descrever a Terra dos Vivos e a Terra dos Mortos não fará justiça ao deslumbramento visual de Festa no Céu. O desenho dos personagens é um espetáculo à parte e surpreende pela originalidade: os moradores de San Ángel são todos inacreditáveis bonecos de madeira, num detalhamento e acabamento de deixar Gepeto morrendo de inveja. Já os bandidos, são bonecos de ferro. Os bonequeiros vão babar (e se arrepiar) quando virem as belezuras!

Festa no Céu, em sua essência, é um filme pacifista. A sua ousadia vai além da temática (amor - morte - redenção - paz) ao levantar a bandeira de protesto contra a violência nas touradas, o seu grande trunfo. O roteiro inteligente, escrito por Jorge Gutierrez e Doug Langdale, ilumina e questiona o cidadão comum e suas idiossincrasias: valores profissionais e culturais, laços familiares, amizade e amor em meio a turbulência... É um assunto cabeça, sem dúvida, mas acessível (e sem subestimar!) a qualquer público. Todavia, quem precisar de alguma ajuda, é só aguardar a pertinente intervenção de um grupo de crianças que, em visita a um museu, ouve a história do nosso trio de anti-heróis e decifra (em diálogos hilários!) as sutilezas do conto de outro mundo. Ou melhor, do conto tradicional do tempo da Independência do México (instigante metáfora!).


Considerando que Festa no Céu tem um argumento genial; narrativa ágil que desvela um México exuberante e desconhecido; personagens muito bem escritos e coerentes com o enredo que passa a léguas da pieguice; cores inimagináveis; figurinos e estampas belíssimas; números musicais que emocionam e divertem; humor saudável, romance juvenil, ação e aventura transcendentais; técnica e 3D irretocáveis..., bonequeiro ou não, está esperando o quê para assistir a essa imperdível festa?


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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