domingo, 6 de dezembro de 2015

Crítica: IVÁN


Num tempo em que a roda do infortúnio migratório humano dá mais uma das suas contundentes voltas, e homens, mulheres e crianças perdem-se no próprio rasto, fundindo-se ao próprio pó, em busca de paz e melhores condições de vida, numa fuga alucinada por mar e terra, rumo a uma Europa em vias de colapso..., chega aos cinemas o bonito e emocionante documentário IVÁN, do cineasta paranaense Guto Pasko.


IVÁN conta a história do simpático Iván Bojko, um refugiado da Ucrânia que, após três anos (1942-1945) de trabalhos forçados na Alemanha Nazista, encontrou asilo no Brasil, em 1948, e seis décadas depois, aos 91 anos de idade, retornou ao seu país para rever os familiares e amigos que foi obrigado a deixar para trás.

O projeto do documentário começou em 2006, quando Iván entregou os seus diários a Guto, e o diretor, também descendente de ucranianos, anteviu ali, na pungência dos relatos daquele sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, uma história de repercussão internacional, por tratar de migração e apátridas. Questões delicadas (invisíveis?) e atualmente em grande ebulição nos continentes africano e europeu, regidos por capitalismo (escapista) ou socialismo (de ocasião) ou democracia (de fachada) ou ditadura (de terror) ou um “estilo” qualquer que não prioriza o humano...


Ao dar a luz às anotações de Bojko, num resgate tocante dos dramas e tragédias que o afligiram desde a juventude, Pasko ilumina também as histórias anônimas ou jamais reveladas de milhões de outros homens obrigados a buscar uma nova (e impossível!) identidade em terras estranhas. Como o fazem, por exemplo, em outro contexto, mas de igual gravidade, os brasileiros sobreviventes da catástrofe de Bento Rodrigues, em Minas Gerais, devastado pela avalanche de lama da Samarco Vale. Quase nada restou da memória do distrito de Bento Rodrigues coberto pelo rejeito de minério. Já às suas antigas lembranças, Iván Bojko juntou novas e não menos dramáticas e angustiantes recordações guardadas por seus parentes e vizinhos de aldeia. Algumas que, talvez, quisesse esquecidas ou inexistentes.


A tessitura de IVÁN é composta de sensíveis fragmentos de memória, que vão preenchendo lapsos cavados pelo tempo na Ucrânia e no Brasil, no antes e no pós-guerra, às vezes abrandados pelo som dolente de uma bandura artesanal ou industrial, instrumento importante na trova que canta a história de luta de um povo ante a opressão. Um filme que cativa, umedece os olhos pela sinceridade dos seus personagens (tantos querendo falar e questionar a um), belas locações e respeito às tradições ucranianas..., como o gesto nobre de Iván Bojko ao vestir terno e gravata para visitar os amigos do “desconhecido” lugarejo. Antigo costume em novos tempos, mesmo em lugares quase esquecidos. As oferendas de boas-vindas são de arrepiar...



Embora norteado pelos diários escritos durante décadas, IVÁN não se trata da biografia de um sobrevivente de guerra, praticamente anônimo em terras brasileiras e ucranianas, mas de uma narrativa comprometida com o sentimento de pertencimento de cada um de nós, que um dia migrou da sua cidade, estado ou país, atrás de um sonho ou fugindo de um pesadelo. Como se diz, podemos até deixar a nossa aldeia, mas a nossa aldeia jamais nos deixará.

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